Começo com um cliché: só quem passa por elas é que sabe.
Agora mais a sério, é difícil explicar os sentimentos e acho que, antes de mais, ser um maratonista é sentir, mesmo quando o nosso corpo deixa de o fazer, mesmo quando já passámos para lá do inteligível.
Antes de mais, não acho que seja algo inacessável ao comum dos mortais, por outro lado, considero que nem todos estão dispostos a embarcar na viagem que é a preparação.
Tudo se resume ao momento em que cruzamos aquela linha de meta, mas essa é tão somente a conclusão. É, precisamente, o fechar de um ciclo que teve de ser iniciado alguns meses antes e que assentou muito na disciplina, seja pela necessidade de meter quilómetros na perna, seja pela urgência em criar mecanismos de gestão, de antecipação das dificuldades e de defesa para fazer face às dores e ao sofrimento em que a corrida se transforma.
Meio a sério meio a brincar, diz-se que uma maratona começa a sério aos 30 km. Por tudo o que se passa naqueles "desgraçados" 12 km, diria que é mesmo assim, que uma viagem tranquila e agradável de 30 km se pode tornar, "de repente", num pesadelo físico e mental.
A disciplina que o treino requer e que nos impede de fazer "desvios", a gestão para determinar ritmos, para fazer face aos nossos gastos energéticos e à ingestão de alimentos, o foco em não deixar fugir aquela ideia de que se vai conseguir superar o obstáculo, a imaginação e o jogo de cintura para se adaptar às vicissitudes da corrida, a responsabilidade de cumprir o compromisso, as competências técnicas para correr "bem" e para superar o cansaço, o sofrimento e força mental para suportar a violência da prova.
Todos estes são traços que, no meu entender, marcam a personalidade do maratonista, sendo que, além disso, são características que nos devem acompanhar na nossa vida "normal".
Olhando para trás, não me vejo a ser outra coisa que não maratonista, porque consigo encontrar pontos comuns entre o João corredor e o João pessoa "normal".
Quem já fez a prova, e eu já tive a felicidade de fazer três oficiais e três em treinos, sabe que tudo se resume à superação. É impossível pensar que se faz com uma perna às costas, porque a dureza derrota-nos de imediato.
Respeito muito a distância, talvez até de mais, porque, de cada vez que a faço, é como se me transformasse, como se excedesse o João "normal" e fosse para lá de mim.
Não é fácil (nem lógico) considerar uma maratona uma zona de conforto. No entanto, é precisamente isso que sinto. Consegui transformar aquele sofrimento e aquela superação a que muitos só se querem submeter uma vez na vida em algo contínuo, num "evento" que marca o meu renascimento, que me mostra que é possível e não há impossíveis. Requer persistência? Sem dúvida. É exigente? Não consigo encontrar melhor forma de descrever a prova. Porém, apesar de tudo, é um desafio que não se resume a um dia, começa muito antes e acompanha-nos dia e noite durante meses a fio. Talvez por isso goste de fazer "apenas" uma a duas por ano, porque me permite esboçar um plano e fazer tudo para o cumprir.
No fim de contas, ser maratonista é ser meticuloso e metódico, sem nunca esquecer uma dose saudável de loucura para fazer acontecer. Por conseguinte, olhando para as pessoas por trás dos maratonistas, diria, não desfazendo de ninguém, que têm um atestado de competência, que revelam responsabilidade e capacidade para passar "além da dor" e para concretizar. Tudo isto, traços relevantes em qualquer sociedade.