Pele e osso e quase sem pescoço
João Silva
A minha esposa diz muitas vezes que eu vou do oito ao oitenta com uma facilidde estonteante.
Confesso que não gosto de ouvir isso, mas, parando para refletir, tenho de reconhecer que ela tem muitas vezes razão.
É um processo de aprendizagem e assumo que o caminho ainda é longo. Há quem diga que se faz caminhando, mas, no meu caso, faz-se correndo, portanto, deverei chegar lá mais depressa.
Como deixei antever no vídeo do último post, fiz adaptações alimentares e adotei algumas restrições. Contudo, caí de tal forma no exagero que passei a barreira aceitável (mesmo segundo a minha médica de família, altura e peso mais ou menos aproximados, ou seja na ordem dos 74 kg) e quis ir mais longe.
Tão longe que cheguei quase a um ponto sem retorno.
À imagem do que referi no vídeo, a corrida potenciou e acelerou a perda de peso e, como a adrenalina, a dopamina e a serotonina atingiram os píncaros no meu corpo, deixei-me me ir.
Comecei a achar que nunca estava suficientemente magro, que era preciso perder mais uns kg. Depois, para piorar as coisas, comecei a levar ao extremo a ideia de razia durante a semana para poder "prevaricar" ao fim de semana.
Nada mais errado. Cheguei a uma altura em que só comia caldo verde (só faço com couve, courgete e batata) de segunda a sexta. Ou seja, o corpo "comeu-me" por dentro, precisava da gordura que eu tinha para se manter ligado. O que não percebi em todo o processo foi que isso ajudou a potenciar o catabolismo do meu organismo.
A massa muscular não se formava porque não havia "matéria-prima" e nem sequer regenerava atempadamente, tendo em conta que treinava e treino seis vezes por semana.
As dores, a sensação de falência, a iminência de desmaios, as tonturas ao levantar, a extrema facilidade em ficar hipotérmico, tudo isto é literalmente avassalador.
É verdade que cheguei aos 60 kg, nunca pensei que tal pudesse acontecer, mas tinha demasiados ossos, muito pouco músculo e um organismo nada funcional. O cérebro, ele próprio um músculo, parecia mirrado. Não conseguia formular uma frase simples em condições, ficava rapidamente zonzo.
O mais grave em todo o processo foi que continuei a achar que era possível existir assim, que estava bem. Comia alguma coisa que achava "pecaminosa" e tratava de forçar a sua extração de seguida. Pesava-me todas as semanas e bastava aumentar 100 g para ficar possuído. Outra das alterações que notei no meu cérebro foi o meu humor. Sempre carrancudo e "doente". Tudo me irritava. Não tinha energia nem para mexer um braço.
E, em alguns aspetos da minha vida, sofri as consequências disso. Paguei caro por ter sido teimoso, por ter ficado "cego" em perseguir um objetivo que não era sustentável (para usar um termo muito atual). Nem o facto de a minha esposa me alertar para a espiral negativa em que me encontrava fez soar os alarmes na minha cabeça.
Quando se chega ao fundo e não dá para ir mais, começamos a vir à tona. Graças a um consumo destravado de granola caseira feita por mim e a uma ingestão desenfreada de frutos secos em fevereiro de 2018, uma altura em que me sentia mal comigo e em que perdi alguma alegria com tudo o que estava a fazer para correr, consegui reverter o processo.
Apesar de tudo, o bom nessa fase foi não ter parado a atividade desportiva regular.
O importante em todo o processo é manter o equilíbrio. Hoje tenho 74 kg, durante muito tempo, tive dificuldades em aceitar isso, mas percebi (também graças à balança e à minha querida esposa) que tinha ganho muita massa muscular. Sendo totalmente sincero, estou 3 a 4 kg acima do que pretendo para ter um melhor desempenho nas provas, mas sinto-me muito mais funcional, consigo "existir" e pensar em condições.
Às minhas custas, percebi que podia comer o que quisesse quando quisesse e que o importante era manter o equilíbrio. Hábitos alimentares regulares e estruturados ajudam a eliminar o que quer que seja. Agora já não vou atrás da perda desenfreada de peso. É gradual, porque se trata de uma forma de vida e nada acontece de um dia para o outro.
Existem sempre contratempos, passei por um há algumas semanas, mas é necessário manter a calma.
Consegui compreender que não andamos nesta vida só um dia (em princípio) e que amanhã estaremos cá novamente (se tudo correr bem), pelo que o fundamental é dosear e relativizar tudo o que nos acontece.
Muitas vezes não é fácil gerir isso, por exemplo, em conciliação com as nossas expetativas pessoais, familiares, profissionais e desportivas, mas, uma vez mais, trata-se de uma aprendizagem.
Uma coisa é certa, mesmo que tenha de ter uns kg a mais (ou de estar dentro do "meu normal"), não quero voltar a passar por noites horríveis sem dormir, em que acordava às 02 e 03 horas da manhã cheio de fome e ia treinar, destruindo o meu corpo. É uma sensação de impotência, de descontrolo e cansaço absolutamente indiscritível e prejudicial.
Sem querer parecer arrogante, hoje tenho um peso mais equilibrado e consigo olhar-me melhor ao espelho, vejo massa muscular, vejo também alguma massa gorda em algumas zonas do corpo, mas vejo-me como uma pessoa com bom aspeto, "apresentável à vista". A minha mulher acha que sim e isso deixa-me feliz.
Ainda olho todos os dias para a minha barriga, para ver se aumentou ou não e, por vezes, chega a ser doentio. Que o diga a minha cara-metade, mas, caramba, aprendi a distinguir o volume que se ganha com a ingestão alimentar (em particular de alguns alimentos) da gordura que se acumula com o tempo, não aparece da noite para o dia.
Este é um assunto que dá pano para mangas, mas considero essencial partilhar este testemunho convosco, porque, apesar de o emagrecimento ter sido uma aventura fantástica até agora, houve um lado negro que me custou algumas coisas essenciais a título pessoal.
Conhecem alguém que tenha passado por algo semelhante, em que, a dada altura, sentisse que estava sozinha contra o mundo que lhe gritava que estava bem? E como acham que lidariam com um cenrário deste género? Qual é a melhor forma de ajudar uma pessoa numa situação destas?