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O que não mata, engorda e transforma-te num maratonista

Em 2016 era obeso, hoje sou maratonista (6 oficiais e quase 20 meias-maratonas). A viagem segue agora com muita dedicação, meditação, foco e crença na partilha das histórias e do conhecimeto na corrida.

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Dez21

"Ta tin ta"

O conto de Natal arrancado a ferros pela Isabel Silva...


João Silva

Abri a porta e lá estava ele...

- Já cá estás, avô? - perguntou-me com a admiração de quem não sabe que horas são e com a articulação possível numa criança de quase cinco anos.

- Hoje vim mais cedo. O corpo já não aguenta tanto tempo a correr - respondi, enquanto tirava o gorro de natal e a gravata decorativa.

- Andas sempre com isso, avô? - quis saber, enquanto se apoderava dos meus acessórios encharcados e do meu frontal. Já sabia ligar a luz... há tanto tempo.

- Queres saber a história da gravata e do gorro, Pedro?

Ainda sem saber a resposta dele, sentei-me no tapete já com uma roupa quentinha e cruzei as pernas.
Depois de fazer a dança do velhinho, como lhe chamava a avó, o Pedro saltou para o meu colo e disse "sim", sem nunca tirar os olhos da gravata e do gorro.

Já bem aconchegados, comecei:

Então olha, o "Ta tin ta" teve duas vidas: uma antes da chegada do filho dele, o Mateus, e outra depois. Foi pouco antes de o filho chegar que se apaixonou pelo Natal e foi já com os primeiros passos e sorrisos do pequenote que percebeu a magia...

Antes disso, o "Ta tin ta" não ligava muito à época nem era muito fã de decorações natalícias. Os natais da sua infância não tinham sido felizes. Não se lembrava de nenhum em que não tivesse havido confusão: ora o pai discutia com a mãe e acabava a dormir no chão de casa dos avós maternos, ora o pai metia-se em pancadaria no café da vila e ia para o hospital com a clavícula partida, ora o pai não controlava os ciúmes e acabava a discutir com o cunhado, padrinho do "Ta tin ta. Quando não era isso a arruinar aquela época, era o padrinho que discutia com a tia, eram os pais que não tinham dinheiro para lhe comprar uma prenda no Natal. Já adulto e dono e senhor da sua vida, o "Ta tin ta" não tinha motivos para gostar do Natal. Passava-os a trabalhar num hipermercado. As pessoas eram mal educadas e tratavam-no mal. Chamavam-lhe nomes feios e não lhe davam descanso. Apareciam quando a loja estava a fechar...

- Já que não querem sair daí, tomem lá... - disse a avó do Pedro que chegara ali sem que nos tivéssemos apercebido. Ela sabia que não íamos arredar pé enquanto não terminasse a história do "Ta tin ta", até porque ela própria gostava da tradição associada ao jovem rapaz.
Ainda antes de seguir viagem para o quente da lareira da sala e para a companhia do nosso filho e da nossa nora, entregou uma fatia de pão caseiro com manteiga ao Pedro e, estendendo a outra mão, ofereceu-me o meu estimado chá verde bem quentinho...

Tentei seguir o fio da história, mas a memória já me pregava muitas partidas...
- Ainda te lembras onde é que o avô ia? - perguntei ao Pedro sempre com a intenção de disfarçar o meu tom preocupado. Aquele esquecimento poderia ser bem mais do que isso

- Estavas a dizer que o "Ta tin ta" não gostava do Natal...
- Boa, era isso mesmo, agradeci, bem aliviado. O garoto estava atento.
Prossegui, procurando não me perder novamente...

Mais tarde, o "Ta tin ta" conheceu uma menina, a Diana, que gostava muito do Natal com os seus pais, as suas irmãs e sobrinhas.
Só que aquela alegria e felicidade genuínas não passavam para o "Ta tin ta". Nem mesmo nas tardes de Natal em que essa família se reunia para trocar presentes e histórias. Havia sempre algo que faltava. Sentia-se sempre sozinho, como se não tivesse direito a partilhar aquela sensação de amor e paz.

Uma vez mais, de vez em quando, lá havia Natal com os pais do "Ta tin ta" e lá voltava a aparecer a discussão. Era uma confusão e era tudo muito triste... Mas as coisas mudam...

Sem se aperceber, o "Ta tin ta" começou a correr para perder peso, porque era muito gordo e não gostava.
E começou perto do Natal.

No sítio onde agora vivia, era tudo diferente. No Natal, havia luzes, tantas, espalhadas por toda a vila... eram tantas casas coloridas, algumas com Pais Natal, outras com presentes. Umas reluziam a verde, outras a azul e ainda havia o vermelho e o dourado.

Parecia que o "Ta tin ta" tinha chegado ao reino encantado do Natal. Na verdade, tinha começado ali a segunda vida dele.
Passou a gostar do Natal.
Mas, mesmo assim, não percebia o sentido. Não acreditava em nenhum deus e não partilhava de nenhuma fé.

A única fé do "Ta tin ta" era a corrida. Assim que punha os pés na estrada, era muito mais feliz, estava sempre a sentir-se preenchido.

Mais tarde, teve hipótese de correr numa corrida que acontecia todos os anos no Natal. As pessoas deram-lhe o nome de São Silvestre.
Era uma magia que não se explicava. Sentia-se feliz no meio daquelas pessoas, eram tantas. E tão felizes naquelas noites. E as ruas?! Eram o melhor. A cor, a vida, a felicidade que davam quando ele passava...

Aos poucos, o "Ta tin ta" sentia que havia algo de especial na corrida e nem mesmo um bicho com um nome esquisito lhe roubou isso.

Quando o seu filho, o Mateus, nasceu...

- Mateus?, quis saber o Pedro ao sentir que era o mesmo nome do seu pai...
- Sim, Mateus, muito bem - respondi, meio atrapalhado e com pressa de acabar a história para não me perder...
A custo, lá retomei...

... O "Ta tin ta" percebeu o que era a magia do Natal quando viu o seu pequeno a sorrir para as luzes e a fazer uma grande festa quando via árvores de Natal nas janelas do prédio da frente.

Nesse momento, o "Ta tin ta" soube que o seu propósito no Natal era correr por toda a vila e acenar aos meninos para lhes levar o espírito natalício.

Criou assim uma tradição. Pegou numa gravata de Natal comprada na loja dos chineses e num gorro de Natal, que sobreviveu aos tempos no hipermercado em que trabalhou, e saiu para correr. Fazia-o sempre de madrugada.

No início era só ele na rua, rodeado por casas, envolvido por árvores e torturado pelo frio. Nada de novo, portanto. Até que, com o passar dos anos, começaram a aparecer os primeiros meninos e meninas à varanda. Já sabiam que ele lá iria passar.

O "Ta tin ta" não levava prendas, levava acenos de mão e sorrisos para todos. Passava pelas vielas muito decoradas e abria os braços para mandar xi-corações. Batia palmas aos meninos e sorria. Desejava um feliz Natal a todos.

Chovia sempre nessa madrugada. E o "Ta tin ta" usava a chuva para lavar as lágrimas da felicidade que levava daquela corrida. Não era mais uma corrida. Era o momento dele.

Com o tempo, o "Ta tin ta" compreendeu o verdadeiro sentido de tudo. Percebeu que o Natal era pensar naqueles de quem gostava, era juntar a cara dessas pessoas às histórias que teve com elas, às memórias que formaram juntos.

Na corrida em que dava mimos a todos, era o "Ta tin ta" que se sentia feliz. Era aí que percebia que também sabia o que era a felicidade genuína. Percebeu finalmente que o Natal era o momento em que era mais feliz e que não precisava de forçar esse sentimento.

O "Ta tin ta" começou a ver o outro lado do Natal e, de repente, os seus natais passados já não eram só as discussões dos seus pais ou os desacatos na família, eram as filhoses rijas mas sempre saborosas da mãe, eram as fogueiras no quintal para cozer bacalhau, eram as músicas e os serões à frente da fogueira em casa do padrinho e com os primos, eram a aletria feita pela mãe, eram os debates acesos sobre política e religião com o pai, eram os doces intermináveis, era o globo oferecido pelos pais num Natal em que não havia dinheiro para prendas...

Durante muito tempo, o Natal era tristeza. Mas a corrida, a vila iluminada e o nascimento do Mateus mostraram ao "Ta tin ta" que mesmo esses natais mais conturbados tinham um toque de magia. O Natal era isso: juntar pessoas e coisas a momentos. Lembrar as vivências do passado. E lembrar novamente. E fazer perdurar a vida daqueles que já partiram no seio da nossa memória.

O pequeno Pedro já não estava a prestar a atenção ao avô. Na verdade, já tinha fugido para junto dos pais e da avó...
Mas lá longe, ainda o ouvi dizer aos pais que queria ser como o "Ta tin ta" e correr sempre para fazer os meninos felizes...

 

 

"Ta tin ta" é o nome que o meu filho dá ao Pai Natal e este conto é também uma forma de lhe mostrar que o Pai Natal existe... Cada um com o seu, nas mais diferentes formas...

Obrigado, Isabel, pela insistência. Não teria tido o enorme prazer de criar esta história, se não me tivesse incentivado a fazê-lo...

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