1, 2, 3, uma entrevista de cada vez
João Silva
Foto: Trail MIUT (Madeira), 42 km em 2018
A pessoa que vos apresento hoje neste espaço chama-se Carla e é minha colega de equipa. Só a conheço há um ano, mas posso dizer, sem quaisquer problemas, que é das pessoas por quem mais sinto empatia. É daquelas coisas que não se explicam, mas o facto de ela ser muito simpática e comunicativa é, sem dúvida, um elemento que me cativa.
Além disso, embora não conhecesse o seu desempenho anteriormente, tem "ar" de guerreira. Dá-me a sensação que, do ponto de vista desportivo, atravessou uma fase menor crença nas suas capacidades. Depois de ter "renascido das cinzas", a Carla é hoje uma atleta que transpira confiança e é isso que mais me surpreende. Quer tenha sido com ajuda de familiares, amigos ou treinadores, quer tenha sido por "vontade própria", é agora alguém que "voa" em provas duríssimas e que, por isso, posso afirmar, me enche e à equipa ARCD Venda da Luísa de enorme orgulho.
A juntar à festa, reúne algumas características parecidas às minhas e também sofre com ansiedade antes de provas duras, grandes e importantes.
Vamos, pois, conhecer a Carla na primeira pessoa:
Foto: Primeiro Ultra trail no Ultra Trail de Sicó (Conímbriga)
- Nome
Carla Patrícia Romeiro
- Idade
45
- Equipa
ARCD Venda da Luísa
- Praticante de atletismo desde
Sempre gostei de praticar desporto, apesar de não ser numa vertente “séria”, no fundo, sempre gostei de movimento. Quando era miúda/adolescente tinha apenas a rua para brincar com as minhas amigas, algumas bonecas, uma bicicleta e pouco mais. Na escola inscrevia-me sempre nos corta--matos. Agora, assim atletismo, dito desta forma séria e a praticar com alguma regularidade, só mesmo desde 2015.
- Modalidade preferida
Não desfazendo de todas as modalidades existentes, a minha predileta, de eleição, sem dúvida, é o Trail Running. Desconhecia por completo esta vertente do atletismo, até que, através do meu primo Sérgio Lúcio, que era um adepto e praticante desta modalidade, descobri a sua existência. Foi ao ler as publicações que ele fazia que me despertou a curiosidade e vontade de experimentar, receosa claro, pois, para mim correr 10 km era quase um limite intransponível.
- Prefere curtas ou longas distâncias
No início, quando comecei esta aventura, jamais me passaria pela cabeça realizar uma prova de Ultra Trail. Era quase surreal, algo extremo. No entanto, fui aumentando gradualmente as distâncias das provas até que experimentei os 54 km do Sicó, distância mais longa feita até agora. Fiquei fã e hoje prefiro, sem dúvida, alguma as longas distâncias. Fazer uma longa distância em Trail funciona para mim como uma terapia e as provas longas dão-nos esse privilégio, raramente vou com o tempo contado. Tenho tempo para pensar em tudo e em nada, chegando ao final com a mente limpa, ou quase limpa. Tenho tempo de “panicar”, de acalmar, de morrer e ressuscitar. Tenho tempo de fazer novas amizades, de conversar e de conhecer os meus limites.
- Na actual equipa desde
2017
- Volume de treinos por semana
5/6 treinos (dependendo da vontade)
Foto: Trail UTAX, 25 km em 2016
- Importância dos treinos
Os treinos são importantes para que mantenhamos o corpo activo. Os nossos músculos funcionam como se tivessem cérebro e para tal precisam de ser estimulados e treinados para que o nosso organismo não sinta um choque demasiado grande ao ter de enfrentar distâncias e dificuldades maiores ao que se está habituado.
Quando se pensa em realizar provas mais exigentes, ou tentar atingir um patamar mais elevado, considero que deve existir um plano de orientado e trabalhado especificamente para tal, de acordo com o objectivo de cada um, para se poder evoluir, melhorar e evitar lesões.
No meu caso, a existência de um plano de treino ajuda-me a ser disciplinada, a sentir-me “responsabilizada” a ter de treinar, porque às vezes nem apetece, está frio, está calor, etc . E também porque me permite ter outra dinâmica, outra performance quando participo em provas, evitando que as termine com a sensação de frustração, exaustão e desgaste superior ao necessário.
- Treinador
Acho que treinador não é bem o termo, porque para mim treinador é aquela pessoa que acompanha pessoal e presencialmente os nossos treinos. Mas tenho um “orientador”, o Miguel Baptista da WRT Running coach, excelente profissional, amante do Trail, que me organiza os planos de treino, me “puxa as orelhas” sempre que necessário e que, principalmente, me ajuda a melhorar todos os dias, treino após treino.
Foto: 42 km no MIUT
- Diferenças existentes entre atletismo passado e actual
Nunca pratiquei outro tipo de atletismo anteriormente. Não faço ideia de como era no passado, mas, pelo que via, o atletismo tinha muito poucos adeptos praticantes, principalmente de trail. Hoje em dia, e há cerca de dois anos a esta parte, há uma emancipação da modalidade, principalmente, devido à organização de pequenos grupos que se juntam para correr pelas ruas e também a um grande aumento de realização de provas. Apesar de a modalidade de trail não ser recente, só há pouco tempo é que começou a ganhar adeptos, e na minha opinião funciona um pouco por modas.
- Histórias insólitas, curiosas ou inéditas
Acho que não tenho… não me lembro...só se forem as vezes em que me perco durante um prova porque vou sempre no mundo da lua.
- Aventura marcante
A maior parte das provas que realizei marcou-me de uma forma ou de outra. Na sua maioria, pela positiva. Pelos locais por onde passei, pelas experiências durante a sua realização, pela capacidade de superação e de evolução. A minha primeira prova de 25 Km, o UTAX, foi uma realização, foi o atingir de algo que pensava ser intransponível, mas, sem dúvida, houve uma que me marcou mais: foi o Trail do Piodão em 2019, distância de 52 Km, com condições climatéricas adversas, muito frio, neve, granizo e trovoada.
Quando tenho uma prova assim, um pouco mais longa, por norma, costumo ficar com “borboletas na barriga”, ouço os comentários de outros atletas acerca da prova e começo a pensar nas dificuldades e tudo me parece medonho. No Piodão, este ano, devido às condições climatéricas que se faziam sentir nesse dia, entrei em pânico interiormente. Morria de medo de entrar em hipotermia e de ter de desistir. Durante toda a prova apanhámos mau tempo, trovoada, queda de granizo, vento muito forte, nevoeiro cerrado e neve. Os últimos 10 km foram feitos com muita queda de neve e não se conseguia ver mais de 1 metro à nossa frente. Deixei mesmo de sentir as mãos. Foi de facto uma prova desafiante. Um desafio ao medo e à superação.
Foto: Trail de 25 km em São Miguel, Açores
- Participação em prova mais longa
Ultra trail de Conimbriga 54 Km
- Objetivos pessoais futuros:
Inscrevi-me novamente na ATRP e pretendo fazer o campeonato Ultra, não com qualquer tipo de objectivo competitivo, mas simplesmente para concluir. Quero desfrutar das provas, de preferência, diferentes das anteriores. Quero superar-me a cada prova, a cada participação. Quero tentar ultrapassar limites que para mim possam ser intransponíveis. Gostava muito de fazer uma prova de 3 dígitos, acho que a maioria de nós mais tarde ou mais cedo quer realizar, mas a longo prazo . Para já, talvez fazer uma prova no país vizinho, uma daquelas que nos faz “panicar” a sério.
- Como vê o atletismo daqui a 5 anos
Daqui a 5 anos espero ver muito mais gente a praticar esta modalidade, mesmo que seja só por hobbie. É sinal que as mentalidades estão em plena mudança para uma vida saudável e ativa.
Foto: 35 km no Trail de Santa Justa
- Como se vê no atletismo daqui a 5 anos
(Gargalhada) Daqui a 5 anos, entro no F50 (feminino, 50 anos). Espero continuar a correr, fazer provas marcantes, épicas, não com grande velocidade…mas também desejo muito continuar ativa e ser exemplo para muitas pessoas. Há uns anos conheci (não pessoalmente) uma senhora, que entretanto já faleceu, e que aos 70 anos ainda praticava trail endurance. Ela tinha uma disposição fantástica, via o trail com uma simplicidade e adorava fazer longas distâncias. A Analice foi uma mulher que me inspirou e me despertou este desejo de superar a inércia. Portanto daqui a 5 anos, ainda sou uma menina (gargalhada) e gostava muito de ser como a Analice.
- Porque existem tão poucas mulheres a fazer atletismo e porque há tão poucas em provas de grandes distâncias?
Eu acho que o número de mulheres a fazer atletismo está a aumentar cada vez mais. No que se refere a provas de longa distância ou de endurance, de facto, o número é muito reduzido. Uma prova de longa distância/endurance não é feita por qualquer atleta, requer bastante treino, dedicação, e, como diz o Canais (elemento "veterano" da nossa equipa), uma grande percentagem de força psicológica (atributo que, valha a verdade, nós até temos bastante). Todos estes fatores são muitas vezes constrangidos pela indisponibilidade pessoal e familiar das atletas. Um facto é que o número tem tendência a aumentar e há muitas probabilidades de o sexo feminino vencer o masculino (sorrisos).
- Existem diferenças de tratamento em relação aos homens?
Se existem, nunca me dei conta de tratamento diferenciado. Pode sempre existir, mas isso não é só no atletismo. Agora quando uma mulher participa numa prova, faz o mesmo percurso, a mesma distância e o mesmo grau de dificuldade que um atleta do sexo masculino. Não somos mais beneficiadas nem temos a vida facilitada por sermos do sexo feminino. E também nunca senti desprezo ou um tratamento inferiorizado por essa razão.